PARTE
I – Aquele valete valia ouro
As
três cartas do baralho, dispostas sobre a mesa, fizeram meu
companheiro de jogo dedilhar sobre a madeira. Era um suntuoso Rei de
Copas, a Dama de Ouros e o Às de Espadas, três cartas que fizeram
brilhar os olhos de todos os presentes. Éramos cinco, à espera da
próxima jogada.
Qualquer
um poderia matar o jogo ali, fazer uma Sequência Real e levar os R$
5 mil que eu ganhei rindo na quinta-feira passada. Eu disse que
ganhei rindo porque matei um palhaço na ocasião, um dos poucos que
me fizeram rir na vida.
— Quem
eu pegar roubando, mato! – afirmou o Armandinho, já prevendo a
derrota.
Armandinho
era um sujeito magricelo, preto, nascido e criado nas vielas do
Cezarão, sempre trajando aquela blusa preta apertada sob a jaqueta
surrada. Estava sempre contando dinheiro, de preferência, dos
outros. Afinal, ele precisava sustentar o vício sem limites dos
cigarros dele. Inclusive, ele trazia um na boca. Apagado.
O
cenário onde eu estava parecia criminoso. E era. Sob a luz baixa da
lâmpada quase despencando sobre nós, cada um ali tinha um passado a
esconder ou um presente para sustentar. Um total de 10 homens, sendo
cinco assistindo ou aguardando para iniciar uma briga. De agiota a
miliciano, não restava dúvidas de que naquela noite, alguém
deixaria de pensar no futuro.
— Se
quiser, pode sair do jogo, Armandinho. Tá toda hora ameaçando, uma
merda já!
O
carinha que meteu a real era meu parceiro fiel do Poker. André, o
nome dele. Branco que nem papel, ficava vermelho só em mover os
músculos da cara. A gente dividia a grana conquistada com muito
esmero e talento. Ele era mais tacanho no ramo, e como sou um
cavalheiro, quase um lorde saído das entranhas dos castelos
europeus, sempre deixava uns 20% a mais para ele.
Armandinho
nos espiava; ele tinha uma obsessão comigo, não sei explicar.
Entendo a força da natureza que eu represento, mas acho que não
faço o tipo dele. Ajeitei meu coque, coçei minha barba aloirada.
Por fim, aspirei o ar putrificado pelo décimo cigarro do Armandinho.
Ele ainda mantinha o décimo cigarro apagado na boca.
Enfim,
Armandinho jogou sua carta: um 2 de paus. Achei simbólico, já que
ele sempre parece um dois de paus estacado nas esquinas, aguardando
um trouxa para agiotar.
— Puta
que pariu…
Foi
a vez do Naldão reclamar. Ele, um sujeito truculento, parceiro das
vias de fato do Armandinho, parecia saído dos filmes de faroeste:
sempre pronto para puxar a arma, com olhos semicerrados, enquanto
equilibrava o cigarro no canto da boca.
Ele
não fumava, fato. Mas Armandinho, sim.
Armandinho,
então, jogou suas últimas cartas sobre a mesa. Já tinha dado o
jogo como perdido. Pegou o copo de uísque barato e engoliu de uma
vez só. Aquilo bastou para causar um certo alvoroço, já que toda
vez que ele perdia, ele saía para cobrar uma dívida antes do prazo
combinado.
Foi
nessa deixa que, sem ninguém perceber, retirei um perfeito Valete de
Paus da minha manga e coloquei no lugar o 4 de Copas. Sob o olhar
matuto de André, mostrei que eu tinha pressa.
— Não
sei vocês, mas hoje será uma noite daquelas. Preciso me apressar,
por favor?
Naldo
e os demais me espiaram e menearam a cabeça. Foi quando eu lancei o
Valete de Paus sobre a mesa e fiz uma linda Sequência Real. Raspei
as fichas da mesa sob o olhar fuzilante de Armandinho.
— Eu
ainda te mato, cara. É a terceira vez que tu mete um Valete nessa
porra.
Levantei
da cadeira e já me posicionei para pegar a mala de dinheiro.
— Da
próxima, faço Poker com um Rei de Copas.
O
deboche foi claro, não restava dúvidas sobre isso. Armandinho se
levantou na fúria, queria me atacar. DO NADA. Naldo e os demais
tentaram apartar e levaram socos e pontapés. Acabou que todos eles
estavam envolvidos na briga e não me viu sair de fininho com o
André. Armandinho deixou os outros se divertirem – ele chamava
briga de diversão – e saiu em seguida.
Dividi
a grana com o meu parceiro e dei aqueles 20% maroto por ele ser fiel
na jogatina.
Todo
homem, em algum momento da vida, precisa ser fiel aos seus
compromissos. E eu já estava atrasado para o meu.
PARTE
II – O Otário
Eu
estava colocando a minha máscara ninja quando percebi que o
Armandinho se aproximava sorrateiramente.
A
bituca de cigarro fora jogada no chão e pisada por ele, como se
fosse um forasteiro que acaba de chegar à cidade atrás do alvo para
matar. Ele tinha esse jeito brega, mas era um agiota legal.
— Tu
usa máscara, Benjamin? – indagou ele, sério.
Meneei
a cabeça de forma positiva. Uma coisa que aprendi nessa pandemia é
o valor do silêncio: quando não falo muito, evito a falta de ar.
Armandinho
já estava se preparando para puxar outro cigarro, quando eu pedi
para ele dar um tempo. “Pra evitar deixar pistas”, eu disse. Eu
tinha falado para ele que um cliente não me pagou pelo serviço da
semana passada. Alegou que eu devia ter esperado o carinha tirar a
fantasia de palhaço.
— E
que diferença fazia?
— Matei
o cara errado – menti. Óbvio que não faço rolê aleatório por
aí. E óbvio também que ninguém deixou de me pagar, mas eu
precisava da grana do Poker e da companhia de Armandinho.
Armandinho
arregalou os olhos, para logo depois gargalhar.
— Tu
é maluco, otário!
Uma
coisa legal do Armandinho é que todo mundo pra ele é otário, não
importa com quem ele esteja falando. Sei que é uma coisa nossa de
carioca, mas eu nunca gostei de tratar as pessoas assim, afinal, não
sei com quem estou falando. E se for bandido?
PARTE
III – Éramos Seis
No
meio do caminho, eu e Armandinho caminhávamos com rumo definido.
Adiante, algo me deixou puto, e poucas coisas me deixam puto nessa
vida: um aglomerado de quatro pessoas no ponto de ônibus.
— Quem
é o carinha que tu vai pegar? – perguntou o Armandinho, olhando
atentamente para o grupo.
— Um
otário.
Enquanto
Armandinho ria, eu observava as pessoas no ponto de ônibus. Aquele
cenário na Presidente Vargas estava curiosamente nebuloso. Parecia
cenário de Silent Hill.
Algumas
poucas pessoas que passavam de carro olhavam pra gente de forma
esquisita. Não julgo. O moleque
de
cabelo verde rebolava cada vez que rodava para ver se vinha algum
ônibus.
Nada
contra, tenho até amigos que pintam o cabelo de rosa.
A
garota
morena,
que devia ter uns 25 anos, trabalhada na blusinha e calça de couro,
não tirava os olhos de mim. Imagino que seja difícil mesmo resistir
a esse cavanhaque e a esse coque samurai. Sou irresistível.
O
jovem
negro
ali da ponta, tentando fazer uma ligação sem sucesso. Tinha cara de
funcionário de alguma empresa de contabilidade. Não sei, mas sempre
acho que esses caras de relógio grosso, camisa de manga ¾ listrada
e portando pasta trabalha com a contabilidade.
E
o idoso
bocejando
com as mãos nos bolsos? Velho não pode ficar de bobeira que já
quer dormir. Não julgo. Quase bocejei também.
Todos
eles me encaravam igualmente. Com certeza, assim como eu, ideias a
respeito da minha aparência faziam parte de seus pensamentos. Um
cara como eu, branco, cabelos aloirados e de coque samurai, bonito; trajando uma camisa preta por baixo de um paletó
marrom, uma calça social e sapatos de camurça; e claro, meu
histórico de atleta, verdadeiro, sem sombra de dúvidas.
É,
nenhuma ideia errada sobre mim eles teriam. Fico satisfeito quando eu
tiro conclusões acertadas.
— Vamos
rachar um Uber? – perguntei, fazendo todos menearem a cabeça, na
dúvida. Não esperei uma resposta positiva, e saquei meu celular do
bolso.
Armandinho
me puxou no canto, tentou falar entredentes para ninguém ouvir.
— Uber,
cara? Fala logo quem é o otário que tu quer encaçapar que eu te
ajudo e a gente se manda daqui.
— Mas,
por que você acha que eu chamei o Uber?
Armandinho
fez cara de surpresa, e logo piscou o olho, entendendo a malandragem.
— Vai
caber todos no carro? – indagou o moleque do cabelo verde.
— Posso
ir no colo de alguém – rebateu a morena, me secando
descaradamente. O moleque do cabelo verde fez cara de nojo, por um
momento, achando que era com ele.
Desliguei
o celular e avisei que o Uber estava para chegar. “Demos sorte, ele
tá perto”, eu disse. Como num passe de mágica, um carro preto
cruzou a esquina e parou rente à calçada. Todos aliviados, já
preparados para se aproximar do veículo, quando três caras saltam
do carro, armados de pistolas.
Fiquei
horrorizado, já que nem no cenário de Silent Hill a violência dá
sossego no Rio de Janeiro. Os caras mandaram passar tudo, mas o jovem
negro com
cara de contador, tentou correr. Não sei o que ele pensou, porque
não havia nada ali para se esquivar de uma bala. E não se esquivou.
Levou DOIS balaços pelas costas e caiu de cara no chão.
A
morena gritou, deu chilique, pediu pela própria vida. Um dos
meliantes analisou o caso com esmero, mas foi interrompido pelo grito
abafado do velho.
Teve um infarto ali mesmo. Velho é um perigo, morre por qualquer
coisinha.
A
essa altura, o moleque do cabelo verde já tinha dado mais bandeira
que a torcida a favor do Governo em dia de manifestação. Os caras
não gostaram.
— Mete
o carai nessa bicha que eu não tenho paciência!
Tive
a impressão de que o moleque ia correr, mas não deu tempo; levou
muita surra. Era para virar homem, dizia um deles. O moleque
desmaiou, banhado de sangue. Armandinho não entendendo nada.
— Que
tá acontecendo, Benjamin? Nera só um otário?
Nem
respondi. Saquei que a morena queria vazar, mas um dos bandidos,
mordendo os lábios, começou a afrouxar o cinto na direção dela.
— Para
aí, rapaz – impedi – vocês já pegaram o que queriam, não? Não
precisa disso.
— A
lá, o cara tá de saca – disse o branquinho de cabelo loiro –
mete o bagulho?
— Pode
meter – disse um neguinho.
O
sujeitinho branco apontou a pistola pra mim, enquanto isso, o
neguinho se posicionou na frente da morena, já arriando as calças e
calibrando a peça. O branquinho não gostou.
— Tira
o olho que eu vi primeiro, maluco!
— Tu
é mole demais, aposto que nem no ponto tá.
— Tu
quer ver o meu ponto, rapá?
O
branquinho disse isso e sacudiu a peça mole, enquanto segurava a
pistola na outra mão. O outro parceiro riu. O branquinho não
gostou.
— Mané!
E
meteu dois tiros nas fuças do colega, que caiu no asfalto, mortinho.
O outro parceiro ficou indignado: “tudo isso por conta de mulé?”
E
meteu bala na direção do pescoço da garota. O sangue espirrou
pelas costas do neguinho, que viu o sonho de se aliviar tombar na
calçada. Aquilo tinha ido longe demais.
— Olha
a sujeira que nóis
fez, maluco? – observou o neguinho sob o olhar matuto do único
parceiro que sobrou – Bora vazar daqui!
Os
dois caras empurraram eu e Armandinho e mandaram a gente entrar no
carro, um gol branco de 2008. Armandinho atento, mas entendeu que era
melhor seguir quieto.
PARTE
IV – Cidade Violenta
Nós
quatro, a 80 km/h, quem sairia vivo dessa noite sangrenta? Eu não
fazia ideia, apenas que o carro deu uma guinada, cantou o asfalto e,
por fim, freou de forma brusca em um cantão qualquer. Os caras não
tinham tato mesmo. Abriram a porta e nos puxaram lá de dentro.
— Pronto!
Vou querer os 25% do vacilão lá, hein, quero nem saber.
Falou
o neguinho, cheio de marra, mas 50% era muito para quem fez tanta
sujeira. A propósito, todos fizeram sujeira por igual.
— Era
só o idoso, aquele senhor endividado até o pescoço. Não precisava
fazer chacina – eu disse.
— Qualé?
– indignou-se o outro parceiro – Tu pediu delivery, agora tá
reclamando do pacote extra?
— Eu
não pedi brinde.
Não
dei tempo para ninguém. Puxei, de surpresa, minha g-lock escondida
próxima do calcanhar e disparei contra o segundo elemento. O
neguinho estava esperto, mas eu sempre tive boa cognição. Acertei
logo a cabeça que é para ele não ter ideias inovadoras ali. Com
ambos mortos, encarei Armandinho, mais passado que o bife da dona da
pensão onde resido humildemente.
— Cara,
que noite! Então o velho é quem tava na tua mira? E acabou
infartando – Armandinho riu, que nem um desgraçado que ri com a
própria piada na mesa de bar.
— Pra
tu vê como meu trabalho é difícil. Por isso pedi que me
acompanhasse, para que nada mais saísse dos meus planos.
— Opa!
Mas eu não fiz nada. A propósito, quanto vou ganhar nessa
brincadeira?
— Quem
assiste é quem paga o ingresso.
Armandinho
não teve tempo de reagir, e meti um balaço nas fuças dele. Caiu
para trás no susto. Na ocasião, caiu também uma carta da minha
manga: o valete de paus, minha sorte nas jogatinas.
Enquanto
os três corpos jaziam sob a luz de uma belíssima lua cheia,
caminhei até a beira da estrada, admirando minha carta de um lado, e
mantendo a minha g-lock na outra.
Eis
que um chevette preto com cara de carro de bandido estaciona adiante.
Um sujeito de 60 e poucos anos desceu, pinta de chefe da máfia,
paletó marrom, e um cigarro pendurado no canto da boca. Avaliou o
cenário, deu uma baforada com o cigarro. Pigarreou.
— Tu
usa máscara?
A
gente se encarou por instantes. Depois ele riu e tossiu de novo. Na
minha cara. Deu um tapinha maroto nas minhas costas.
— Salvando
vidas, entendo...– ele espia por cima do meu ombro – Era pra ser
só o Armandinho.
— Era,
não foi. Chamei por um Uber, recebi assaltantes.
— Cidade
violenta – ele concluiu, depois tossiu de novo.
Se
ele soubesse como é difícil trabalhar para uma lista de clientes em
uma mesma semana. Eu não daria conta sozinho de duas ofertas, o
velho e o agiota. Mas, da próxima, não vou chamar o Uber. Amadores.
E
sim, a cidade está muito violenta, e eu odeio violência, inclusive.